Page 28 - Boletim numero 259 da APE
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 EVOCAÇÕES
AN Filha da Marquesa
     o início da década de 1960, o capelão do Instituto, padre Rui Correia Leal, valorizava muito o ex-aluno Duran Clemente, um dos finalistas do ano lectivo de
1960/61. Era compreensível que assim acontecesse, pois fora um aluno importante, tendo sido Comandante de Bata- lhão e um dos quatro fundadores da Conferência de S. Vi- cente de Paulo no Instituto, abreviadamente conhecida por “Conferência”. Como fui admitido em Outubro de 1962, não conheci tal colega.
Muito perto da 1a Secção do Instituto, em S. Domin- gos de Benfica, situava-se o Palácio dos Marqueses de Fron- teira, nele residiam a “Marquesa”, como era conhecida na gíria do meu tempo, e o seu ainda jovem filho.
Ora, uma das “qualidades” apontada pelo nosso Cape- lão ao Duran Clemente, era o facto de ter namorado ou [namorar?] a filha da “Marquesa”.
Passados alguns anos, numa tarde solarenga de sexta- -feira, o padre Rui passou apressado por mim e por um ou- tro colega, que já não recordo, e determinou que, no dia seguinte, pelas dezasseis horas, iríamos tomar chá com a filha da “Marquesa”.
Esta inesperada convocatória, que nos obrigava a retardar a saída de fim de semana, constituiu uma surpresa completa devido à total ausência de uma explicação e à invulgar tarefa que nos foi destinada.
No dia seguinte, sábado, à hora marcada, acompanhá- mos obedientemente o padre Rui até à entrada do palácio, com um alto portão metálico gradeado à beira da estrada alcatroada, que para a direita subia pelo Parque Florestal de Monsanto.
O portão foi aberto, entrámos num pátio onde fomos inspecionados por dois cães enormes de cor clara, virámos à direita e dirigimo-nos a uma porta onde parámos por momentos antes de a transpor. O padre Rui passou a porta, seguido pelo meu colega, e avancei também. A perna direita entrou, o que me permitiu espreitar para dentro da habitação. Para a esquerda estendia-se uma grande sala rectangular luxuosamente decorada com belíssimos lustres no tecto e nas paredes.
Fui trespassado por um sentimento que me alertou que aquele meio não se harmonizava nada comigo e a perna esquerda já não chegou a entrar. Dei meia volta e, sem aviso, regressei às instalações protectoras do Instituto.
Mas fiquei algo preocupado, receando que quando o padre Rui me encontrasse seria presenteado com uma grande ralhadela. Até do meu colega poderia esperar uma reacção parecida. Por isso, durante um certo tempo os evi- tei, até me convencer de que não me cobrariam a desforra.
Nunca soube o que aconteceu nesse encontro, nomeadamente como era a filha da “Marquesa”. Mas a curiosidade nunca abandonou a minha ideia.
José Lopes
19620124
Muitos anos depois, a minha mulher, que era professora primária, preparou-se para fazer uma visita de estudo com os seus alunos ao palácio. Contei-lhe então o episódio e pedi-lhe que recolhesse as informações que pudesse sobre a vida da filha da “Marquesa”. Disseram-lhe simplesmente que nunca houvera uma filha da “Marquesa”, só um filho, ainda vivo.
Imaginei então que pudesse tratar-se de uma filha ile- gítima, o que justificaria que se mantivesse incógnita.
Numa outra visita de estudo, a minha mulher pôde colocar o assunto de forma mais completa e rigorosa, mas o resultado foi o mesmo.
Como não acreditava que o padre Rui fosse capaz de manter uma brincadeira de tão mau gosto durante esses anos, fiquei sempre a ansiar por uma explicação do assunto.
O tempo avançou e encontrei-me por duas vezes com o padre Rui na bonita igreja de São João de Brito, também em Lisboa. Tive vontade de lhe pedir esclarecimentos, mas fal- tou-me a coragem. Na primeira vez, porque também se en- contrava presente um outro ex-aluno e como a conversa nunca se prestou a isso, poderiam pensar que fora visitá-lo por esse motivo, o que não era verdade. Na segunda vez, fui vê-lo por causa de uma notícia falsa sobre o seu falecimento e considerei que o assunto era demasiado melindroso para ser desvirtuado por uma bagatela.
Então tive uma ideia brilhante: em 2013 enviei um E-mail ao ex-aluno Durand Clemente, que convivera com a aristocrática família, para que fornecesse a explicação que eu tanto aguardava.
Segundo um esclarecimento enviado pelo mesmo meio, a “Senhora Marquesa” chamava “filhos” aos amigos e “filhas” às amigas do filho. Fazia sentido, pois era fácil de compreender que uma senhora com um filho único tivesse necessidade de imaginar mais filhos.
O padre Rui faleceu em 25 de Agosto de 2014 e levou para a sepultura a essência do assunto. Tinha 88 anos.
O único descendente genuíno da “Marquesa” faleceu em 12 de Novembro desse mesmo ano. Tinha 69 anos.
Nota: Se o colega que tomou chá com a “filha” da Senhora Marquesa ainda tiver esse acontecimento na memória e o quiser reviver e descrever, ficaria muito grato.
             26 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • outubro a dezembro









































































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