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cRóNIcAs
Um português no Oriente...
Ainda não deixaram de bem cumprir,
CâNDIDO DE AzEVEDO nem nunca envergonharam o País!
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ou civil. Funcionário público. Trabalho. Tenho um ga- se passa no nosso Portugal e questiono. Procuro causas.
Sbinete moderno que reparto com outros, climatizado, Hoje aqui questiono o porquê da incompreensão dos po-
música ambiente e até máquina com garafão de água de líticos para com os militares (os verdadeiros ) e o porquê
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qualidade e certificada. A minha secretária é de madeira do desinteresse dos jornalistas para com a sua condição.
polida, brilhante, com uma agadável cadeira de reclinar. Todos os países soberanos, senhores da sua independên-
Na cantina, diariamente, um dos quatro pratos à escolha cia, possuem um exército. Por mais que evoluam a arte da
é degustado na companhia de uma cerveja. Confortável, guerra, a tecnologia das armas e a sofisticação dos equipa-
trabalho com gosto e penso no bom do dia a dia. mentos, a eficácia de um exército dependerá, cada vez mais,
Mas fui militar. Não desertei, não estive na rectaguarda, dos seus homens. Soldados adestrados, motivados e bem
não procurei um gabinete. A minha mesa de trabalho, liderados continuarão sendo o fator decisivo para a vitória.
muitas vezes, foram arbustos, pedras, restolhos, pântanos, Para tal exige-se destes inúmeros sacrifícios e especiais trei-
trepadeiras de feijão macaco e morros de formigas talaco. namentos, e estes juram dar a própria vida em benefício da
Entre os dedos não sentia a lisura de uma “parker”, mas Pátria. Mas embora cumprindo o seu dever, são homens:
o frio metálico do gatilho. O ar, esse não era condicionado, têm família, filhos, que têm como dado adquirido que o pai
era natural: insuportável, húmido, sendo certo que se por volta mais logo, não imaginando que tal pode não acontecer....
vezes nos derretia, outras vezes, porque frio, vazava-nos E dos nossos políticos o que se exige? Estarão dispostos
até aos ossos. E era a cacimba, a restinga, a chuva que nos aos inúmeros sacrifícios pessoais? Jurarão dar a vida se
empapava dias a fio e sei lá que mais. Comida? Pão de 3 necessário? Em vez da sua indiferença deveriam sim senti-
dias ou mais, com um guisado frio e sebento, enlatado; rem-se orgulhosos dos seus militares. Mais ainda, quando
água de parte incerta com um compromido desinfectante encontram pela frente uma Instituição capaz, disciplinada,
dissolvido por causa das dúvidas. Como música ambiente com espírito de serviço e de missão, apesar de lhes deter-
tantas vezes explosões, tiros, gritos, choros... silêncio e luar, minar cortes constantes em tudo, apesar de não lhes dar
quantas vezes rompidos por uma voz baixa e assustada de perspectiva de evolução na carreira, nem aumento de orde-
alguém arrancando das entranhas uma Avé Maria ou um nado, nem mordomias, nem carros de luxo, digo, de com-
Salvé Rainha. bate e modernos, telemóvel de serviço, digo armamento
Durante aquelas longas mil e oitenta noites estive na actualizado, despesas de representação, outros emolumentos
linha da frente, jamais esquecendo a universal oração do mais ou menos disfarçados... E os militares portugueses
combatente, aprendida no inferno de um curso de “co- ainda não deixaram de bem cumprir nenhuma missão, nem
mandos”. Por mim e pelos Homens que comandava, assim nunca envergonharam o País nos numerosos teatros de
diariamente pedia: Senhor dai-nos hoje na mata a sobrieda- operações espalhados pelo mundo, nestes últimos 25 anos.
de para resistir, dai-nos a clareza da justiça e a força de não Por mim, tenho orgulho neles. Apesar de fortemente
desistir. Dai-nos Senhor a perseverança para sobreviver, a penalizados, fortemente incompreendidos, apenas lembra-
coragem para perdoar e a fé para harmonizar e vencer. E dos quando estilhaçados na Bósnia, abatidos no Afeganistão,
dai-nos também, Senhor, a esperança e a certeza do retorno... ou por actos heróicos como o do Sargento-Ajudante sal-
E Ele cumpriu o pedido e eu cumpri para com a Pátria. vador-recuperador dos últimos pescadores naufragados há
Sofri. Chorei. Ensaquei corpos. Respeitei o inimigo. Mas dias no Atlântico. Todos eles, seja para onde forem man-
regressei. Aprendi a não deixar que o medo me impedisse dados, continuam dia após dia a cumprir: procuram salvar
de tentar. Aprendi a dar valor a todos os instantes, como vidas, com dedicação e competência. E os nossos políticos?
se não houvesse amanhã. Fiz sólidos amigos para o resto Destroçaram um país e puseram em fanicos a boa ideia de
da vida. Foi uma Escola. Porque fui um deles aprendi democracia. Dou comigo a pensar como seria se estes
também a respeitar os verdadeiros militares e a admirar políticos recebessem um salário médio de 1200 euros mais
aqueles que hoje ainda escolhem tal profissão. 300 de risco de vida ...
Ontem Eu, a minha geração, Índia, África. Hoje outros
portugueses, outros Homens, Serajevo, Bósnia, Iraque, (1) Relembro que a minha “guerra” nada teve a ver com a da meia dúzia de
Afeganistão, Líbano, etc. Hoje, em final de carreira, vivido, antigos militares que há 35 anos se passeiam frente às câmaras da TV e
pelos corredores do Parlamento, pois estes certamente nunca sentiram o
duro, humilde e humanista, valorizando a vida, vejo o que “cheiro e o ruído da kalashnikov a costurar”, à sua frente.
10 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército