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                                  Um português no Oriente...


                                  Ainda não deixaram de bem cumprir,


           CâNDIDO DE AzEVEDO     nem nunca envergonharam o País!
           19600364




              ou civil. Funcionário público. Trabalho. Tenho um ga-  se  passa  no  nosso  Portugal  e  questiono.  Procuro  causas.
           Sbinete moderno que reparto com outros, climatizado,   Hoje aqui questiono o porquê da incompreensão dos po-
           música ambiente e até máquina com garafão de água de   líticos para com os militares (os verdadeiros ) e o porquê
                                                                                                   1
           qualidade e certificada. A minha secretária é de madeira   do desinteresse dos jornalistas para com a sua condição.
           polida,  brilhante,  com  uma  agadável  cadeira  de  reclinar.   Todos os países soberanos, senhores da sua independên-
           Na cantina, diariamente, um dos quatro pratos à escolha   cia, possuem um exército. Por mais que evoluam a arte da
           é degustado na companhia de uma cerveja. Confortável,   guerra, a tecnologia das armas e a sofisticação dos equipa-
           trabalho com gosto e penso no bom do dia a dia.    mentos, a eficácia de um exército dependerá, cada vez mais,
              Mas fui militar. Não desertei, não estive na rectaguarda,   dos  seus  homens.  Soldados  adestrados,  motivados  e  bem
           não  procurei  um  gabinete.  A  minha  mesa  de  trabalho,   liderados continuarão sendo o fator decisivo para a vitória.
           muitas vezes, foram arbustos, pedras, restolhos, pântanos,   Para tal exige-se destes inúmeros sacrifícios e especiais trei-
           trepadeiras de feijão macaco e morros de formigas talaco.   namentos, e estes juram dar a própria vida em benefício da
           Entre os dedos  não sentia a lisura de uma “parker”, mas   Pátria.  Mas  embora  cumprindo  o  seu  dever,  são  homens:
           o frio metálico do gatilho. O ar, esse não era condicionado,   têm família, filhos, que têm como dado adquirido que o pai
           era natural: insuportável, húmido, sendo certo que se por   volta mais logo, não imaginando que tal pode não acontecer....
           vezes  nos  derretia,  outras  vezes,  porque  frio,  vazava-nos   E dos nossos políticos o que se exige? Estarão dispostos
           até aos ossos. E era a cacimba, a restinga, a chuva que nos   aos  inúmeros  sacrifícios  pessoais?  Jurarão  dar  a  vida  se
           empapava dias a fio e sei lá que mais. Comida? Pão de 3   necessário? Em vez da sua indiferença deveriam sim senti-
           dias  ou  mais,  com  um  guisado  frio  e  sebento,  enlatado;   rem-se orgulhosos dos seus militares. Mais ainda, quando
           água de parte incerta com um compromido desinfectante   encontram pela frente uma Instituição capaz, disciplinada,
           dissolvido por causa das dúvidas. Como música ambiente   com espírito de serviço e de missão, apesar de lhes deter-
           tantas vezes explosões, tiros, gritos, choros...  silêncio e luar,   minar cortes constantes em tudo, apesar de não lhes dar
           quantas vezes rompidos por uma voz baixa e assustada de   perspectiva de evolução na carreira, nem aumento de orde-
           alguém arrancando das entranhas uma Avé Maria ou um   nado, nem mordomias, nem carros de luxo, digo, de com-
           Salvé Rainha.                                      bate  e  modernos,  telemóvel  de  serviço,  digo  armamento
              Durante aquelas longas mil e oitenta noites estive na   actualizado, despesas de representação, outros emolumentos
           linha da frente, jamais esquecendo a universal oração do   mais  ou  menos  disfarçados...  E  os  militares  portugueses
           combatente, aprendida no inferno de um  curso de “co-  ainda não deixaram de bem cumprir nenhuma missão, nem
           mandos”. Por mim e pelos Homens que comandava, assim   nunca  envergonharam  o  País  nos  numerosos  teatros  de
           diariamente pedia: Senhor dai-nos hoje na mata a sobrieda-  operações espalhados pelo mundo, nestes últimos 25 anos.
           de para resistir, dai-nos a  clareza da justiça e a força de não   Por mim, tenho orgulho neles. Apesar de fortemente
           desistir.  Dai-nos  Senhor  a  perseverança  para  sobreviver,  a   penalizados, fortemente incompreendidos, apenas lembra-
           coragem  para perdoar e a fé para harmonizar e vencer. E   dos quando estilhaçados na Bósnia, abatidos no Afeganistão,
           dai-nos também, Senhor, a esperança e a certeza do retorno...  ou por actos heróicos como o do Sargento-Ajudante sal-
              E Ele cumpriu o pedido e eu cumpri para com a Pátria.   vador-recuperador dos últimos pescadores naufragados há
           Sofri. Chorei. Ensaquei corpos. Respeitei o inimigo. Mas   dias no Atlântico. Todos eles, seja para onde forem man-
           regressei. Aprendi a não deixar que o medo me impedisse   dados, continuam dia após dia a cumprir: procuram salvar
           de tentar. Aprendi a dar valor a todos os instantes, como   vidas, com dedicação e competência. E os nossos políticos?
           se não houvesse amanhã. Fiz sólidos amigos para o resto   Destroçaram um país e puseram em fanicos a boa ideia de
           da  vida.  Foi  uma  Escola.  Porque  fui  um  deles  aprendi   democracia.  Dou  comigo  a  pensar  como  seria  se  estes
           também a respeitar os verdadeiros militares e a admirar   políticos recebessem um salário médio de 1200 euros mais
           aqueles que hoje ainda escolhem tal  profissão.    300 de risco de vida ...
              Ontem Eu, a minha geração, Índia, África. Hoje outros
           portugueses,  outros  Homens,  Serajevo,  Bósnia,  Iraque,   (1)   Relembro que a minha “guerra” nada teve a ver com a da meia dúzia de
           Afeganistão, Líbano, etc. Hoje, em final de carreira, vivido,   antigos militares que há 35 anos se passeiam frente às câmaras da TV e
                                                                pelos  corredores  do  Parlamento,  pois  estes  certamente  nunca  sentiram  o
           duro, humilde e humanista, valorizando a vida, vejo o que   “cheiro e o ruído da kalashnikov a costurar”,  à sua frente.



           10  |  Boletim da Associação dos Pupilos do Exército
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