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cRóNIcAs
Fumar um cigarro
no Rio de Janeiro
JACINTO R. DE ALMEIDA
19520049
cidade do Rio de Janeiro está muito diferente do que mulher. Ela vai decidir, hesita entre as duas chamas dos
A era até há poucos anos. É mais segura, anda-se à isqueiros, nenhuma palavra é dita e ela se decide pelo
vontade em ruas anteriormente perigosas, a vida está jovem. A mão que estende o isqueiro eleito matará o
muito mais cara, os transportes públicos estão melhores, velho cuja chama foi desdenhada.
vêm-se pessoas de origem modesta em lugares públicos O líder do tráfico de drogas na Rocinha era um sujei-
(teatros e restaurantes, por exemplo) que antes não fre- to chamado António Bonfim Lopes, o Nem, tem 35 anos
quentavam, algumas favelas foram “pacificadas”, há um e perdeu a guerra ao contrário do jovem do filme clássico
clima de esperança e a auto-estima da cidade e das pes- de Howard Hawks que mata o velho gangster. Os tempos
soas aumentou com a realização do Campeonato de mudaram. Nem foi funcionário de uma empresa de tele-
Mundo de Futebol em 2014 e da Olimpíada em 2016. comunicações, entrou no mundo do crime após ter pedi-
Mas há problemas por resolver. Sempre há problemas a do dinheiro emprestado a um ex-chefe do tráfico da
resolver. Rocinha para pagar gastos de hospital de uma das filhas.
Tinha visto na televisão, na noite anterior, as cenas de Estava desesperado. Ocorre-me que o grande escritor
guerra da invasão da Rocinha (a maior favela do Rio de norte-americano John Cheever disse que a literatura der-
Janeiro), tanques, helicópteros a baixa altitude com um rotou o desespero, foi a salvação de (muitos) condenados
militar a gritar por um megafone ordens de rendição aos e pode (até) salvar o mundo. Mas o Nem não seguiu esse
bandidos e traficantes, pessoas assustadas a descerem as conselho. Para pagar a dívida ao então chefe do tráfico, ele
vielas estreitas com crianças ao colo, polícias armados até começou a vender drogas, ligou-se ao grupo que contro-
aos dentes a baterem nas portas (a minha memória foi lava o tráfico na comunidade, defendia uma política assis-
assaltada por imagens de um dos filmes de que mais gos- tencialista, em 2005 tornou-se o chefe (talvez após puxar
to, “A batalha de Argel”, de Gillo Pontecorvo)… e comecei de um cigarro), ficou mais violento (ordenou a execução
a enrolar um cigarro na minha máquina Marie. Pedi uma e esquartejamento de inimigos, entre os quais a modelo
bebida e um pastel de queijo na esplanada do bar numa Luana Souza, de 20 anos, responsável pelo desvio de uma
esquina do bairro do Leblon, na zona sul da cidade. O carga de haxixe, em Maio passado) e autoritário, vivia no
cigarro estava quase pronto, lembrei-me da canção Smoke alto da favela numa casa com academia de ginástica, pis-
gets in your eyes (quando fumar era politicamente correc- cina e uma vista deslumbrante para o mar, coagia os
to), das imagens da invasão da favela que vira na noite moradores a votar nos seus candidatos para eleições mu-
anterior, do filme Scarface em que duas mãos com isquei- nicipais e estaduais, mudava constantemente o corte e cor
ros se acendem para oferecer as suas chamas ao cigarro do cabelo para passar despercebido, forjou a própria mor-
que uma mulher de beleza fatal acaba de levar aos lábios. te organizando um enterro, e comandou, em 2010, a in-
O isqueiro do velho gangster de quem ela é amante e o vasão de um Hotel de luxo (o Intercontinental), em que
do jovem ambicioso que quer o império do chefe e a 35 pessoas foram feitas reféns.
Boletim da Associação dos Pupilos do Exército | 11